Em março de 2000, mudei com minha família para Montreal, no Canadá, onde Celina, minha companheira, e eu iniciamos nossos programas de doutorado. Lá, conhecemos o Dia de Ação de Graças, celebrado na quarta quinta-feira de novembro. No hemisfério norte, novembro marca o fim das colheitas e a preparação para o longo inverno que começa a dar seus primeiros sinais.
O Dia de Ação de Graças é uma celebração em que as famílias se reúnem para expressar gratidão pelas bênçãos do ano. O prato principal geralmente é o peru assado, acompanhado de purê de batatas e torta de abóbora. Além do convívio familiar, o feriado também promove um forte espírito comunitário, com diversas iniciativas de voluntariado, como a distribuição de refeições para os menos favorecidos e a organização de eventos comunitários. O Dia de Ação de Graças tem uma forte conotação de união familiar e coletividade, pautada na gratidão e generosidade.
No Brasil, não temos o costume de celebrar o Dia de Ação de Graças. No entanto, uma efeméride associada a essa data foi rapidamente incorporada com força total na nossa sociedade: a Black Friday, uma celebração ao consumo e ao início da temporada de compras natalinas.
O termo “Black Friday”, ou sexta-feira negra, foi inicialmente utilizado com conotações negativas. A expressão surgiu na Filadélfia por volta dos anos 1960, quando a polícia a usava para descrever o aumento de furtos e incidentes relacionados à aglomeração de pessoas e ao intenso congestionamento de carros e pedestres após o feriado de Ação de Graças. Com o feriado na quinta-feira e o tradicional jogo de baseball no sábado, as pessoas utilizavam a sexta para iniciar as compras de presentes natalinos.
Nos seus primeiros usos, “Black Friday” carregava a ideia de desordem urbana e estresse, nada favorável ao espírito consumista pelo qual o evento é conhecido hoje. Foi só mais tarde que o termo começou a mudar de significado. Nos anos 1980, comerciantes e varejistas perceberam uma oportunidade de transformar o fluxo de pessoas em lojas e ruas em um evento positivo para o comércio. Assim, houve uma reinterpretação e ressignificação do termo “Black Friday”.
Comerciais começaram a promover a sexta-feira pós-Ação de Graças como um dia de grandes vendas e descontos, incentivando as pessoas a aproveitarem os preços baixos para fazer compras de Natal com antecedência. Os varejistas se afastaram da conotação negativa da expressão através da associação positiva com o termo “in the black”, que em português poderia ser traduzido como “sair do vermelho”, ou seja, escapar do prejuízo.
Essa ressignificação transformou o dia em uma tradição nacional de compras, popularizando a ideia de que era possível comprar a preços mais baixos em uma data específica, incentivando os consumidores a planejarem suas compras em função da Black Friday.
A partir dos anos 2000, a Black Friday se consolidou com cenas de consumidores esperando ansiosamente pela abertura das lojas, e os relatos de aglomerações e disputas por produtos começaram a fazer parte da cultura americana.
A Black Friday chegou ao Brasil em 2010, principalmente impulsionada pelo comércio eletrônico. Inicialmente, o evento foi promovido por lojas online, mas logo o comércio físico percebeu a oportunidade de aumentar as vendas em um período tradicionalmente de baixo consumo. Nos últimos anos, alguns comerciantes começaram a tentar distribuir a demanda da sexta-feira ao longo de todo o mês de novembro, criando o termo “Black November”.
Apesar do sucesso comercial, a Black Friday no Brasil tem enfrentado críticas e desconfiança por parte dos consumidores devido a práticas como a “maquiagem de preços” ou a famosa “metade do dobro”, quando comerciantes aumentam os preços antes para oferecer grandes descontos que, na prática, mantêm o preço original.
Mas esse não é o maior problema associado à Black Friday. O verdadeiro problema parece ser o incentivo ao consumo impulsivo. Com grandes descontos, reais ou fictícios, e ofertas de tempo limitado, os consumidores são induzidos a tomar decisões rápidas, muitas vezes sem reflexão adequada. A pressão das campanhas de marketing, associada ao sentimento de urgência criado por frases como “oferta por tempo limitado” ou “últimas unidades”, leva os consumidores a realizarem compras que nem sempre são necessárias.
Ao invés de atender a uma necessidade real, o consumidor frequentemente acredita que precisa de produtos que, em outras circunstâncias, não compraria. Isso resulta na compra de itens que acabam sendo pouco ou nada utilizados, gerando desperdício de recursos financeiros e materiais.
Outro problema da promoção do consumo desenfreado é o aumento do endividamento da população. O elevado endividamento e as dívidas que muitos consumidores não conseguem honrar resultam em estresse financeiro que, por sua vez, afeta até mesmo a saúde física.
Além das questões financeiras, o consumo excessivo promovido pela Black Friday também tem implicações ambientais significativas. A produção de bens de consumo em larga escala gera uma série de impactos ambientais, incluindo o aumento da emissão de gases de efeito estufa, o consumo de recursos naturais e o descarte de resíduos no meio ambiente.
A reflexão sobre nossas reais necessidades, o planejamento financeiro e a avaliação crítica das promoções podem nos ajudar a evitar armadilhas e a consumir de forma mais responsável. Ao repensarmos o que realmente importa e considerarmos os impactos de nossas escolhas, podemos contribuir para uma sociedade mais sustentável e justa, minimizando os danos do consumismo desenfreado e priorizando o bem-estar coletivo e o respeito ao meio ambiente.
Seria mais enriquecedor se o Brasil importasse o verdadeiro espírito do Dia de Ação de Graças, focado na gratidão, na união familiar e no fortalecimento dos laços comunitários, ao invés de importar o consumismo desenfreado da Black Friday. Celebrar o que temos, refletir sobre nossas conquistas e compartilhar com os outros promoveria valores mais duradouros e significativos, em contraste com a efemeridade das compras impulsivas. Incorporar esse espírito de gratidão e solidariedade poderia contribuir para uma sociedade mais consciente, equilibrada e conectada, valorizando o bem-estar coletivo acima das demandas de consumo.
Jurandir Sell Macedo
Doutor em Finanças Comportamentais com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva, sendo pioneiro nesta área no Brasil. Nosso consultor na área financeira e previdenciária.