Em seu livro “A República”, Platão fala sobre o mito da caverna, onde prisioneiros estão acorrentados desde o nascimento, de costas para a entrada, vendo apenas sombras projetadas na parede por objetos iluminados pelo fogo atrás deles. Para esses prisioneiros, as sombras são a única realidade que conhecem. Um dia, um dos prisioneiros é libertado e, ao sair da caverna, descobre o mundo real, percebendo que as sombras eram apenas representações distorcidas da verdade. Quando retorna para contar aos outros, eles resistem, pois a ideia de uma realidade além das sombras desafia tudo o que conhecem.
Um mito é uma narrativa simbólica criada para explicar fenômenos naturais, origens culturais, valores sociais ou crenças religiosas, desempenhando um papel fundamental na formação das culturas e na transmissão de conhecimentos e costumes.
Cresci sob o mito de que o Brasil era uma “democracia racial”, onde, ao contrário dos Estados Unidos, não havia segregação racial e o racismo não existia. Esse mito, amplamente divulgado e sustentado pelas classes dominantes, defendia que as relações raciais no Brasil eram harmoniosas e que a ampla miscigenação havia promovido uma sociedade onde diferentes grupos étnicos coexistiam sem conflitos graves.
Hoje, me envergonho profundamente de ter nutrido essa crença absurda durante boa parte da minha vida. Me envergonho de ter repetido inúmeras vezes que, se até nosso rei era preto – o Rei Pelé –, certamente vivíamos em uma sociedade não racista.
No entanto, essa “democracia racial” idealizada só existia de forma conveniente para nós, brancos. A realidade vivida pela população negra e parda do Brasil era bem mais dura, e o racismo estrutural, embora velado e não declarado oficialmente, prejudicou e ainda prejudica esses grupos, talvez de forma ainda mais perversa do que a segregação explícita.
A partir do fim da ditadura militar, movimentos sociais, intelectuais e pesquisadores começaram a questionar e desconstruir o mito da democracia racial. Os dados falam por si: no mercado de trabalho, pretos e pardos ganham menos que brancos, mesmo ocupando a mesma função; no sistema judiciário, condenações de pretos e pardos são mais duras; e os índices de violência policial atingem desproporcionalmente a população negra.
Nos anos 2000, o Brasil começou a adotar políticas afirmativas para reduzir essas desigualdades, reconhecendo, por meio de leis e incentivos, a necessidade de corrigir essa disparidade histórica. Um marco importante foi a implementação de cotas raciais em universidades públicas e concursos, ampliando a presença de pessoas negras e pardas em espaços de educação e trabalho que, historicamente, lhes foram menos acessíveis.
Em 2003, foi instituído o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, data em que Zumbi dos Palmares, grande líder da resistência negra contra a escravidão, foi capturado e morto em 1695, tornando-se símbolo de resistência. A data foi nacionalmente reconhecida em 2011 e, em 2024, tornou-se feriado oficial.
Estamos avançando, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Em 2018, pretos e pardos compunham 54,9% da força de trabalho, mas representavam 64,2% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados. Além disso, 47,3% dos trabalhadores pretos ou pardos estavam em ocupações informais, em contraste com 34,6% dos brancos. O rendimento médio dos trabalhadores pretos ou pardos correspondia a apenas 57,5% do rendimento dos brancos.
Nos EUA, segundo um relatório da Society of Actuaries Research Institute de 2024, 55% das famílias brancas participavam de planos de aposentadoria 401(k), enquanto apenas 47% das famílias negras faziam o mesmo. Além disso, a média de riqueza acumulada para aposentadoria de famílias negras era cerca de 43% da média das famílias brancas.
Ao buscar dados sobre o percentual de investimentos em previdência privada entre pretos, pardos e brancos no Brasil, não encontrei informações. Isso pode ser uma oportunidade para a ABRAPP e a FenaPrevi jogarem luz sobre o tema, pois a falta de dados já sugere uma tentativa de “fazer vistas grossas” a um problema real.
Conversando com pessoas do mercado financeiro, se percebe que pretos e pardos têm menor cobertura de previdência complementar e baixa participação em investimentos financeiros em geral. Mesmo para aqueles que ascenderam economicamente, muitos ainda precisam olhar para seus progenitores e parentes próximos, que frequentemente não tiveram as mesmas oportunidades.
Platão usa a metáfora da caverna para ilustrar a busca pela verdade e pelo conhecimento: muitas vezes, as pessoas estão limitadas por suas percepções e crenças, e é preciso coragem para enxergar além das sombras da ignorância e alcançar a compreensão verdadeira da realidade.
O racismo é inaceitável e criminoso nos dias de hoje. Se você ainda acredita no mito da democracia racial, é hora de sair das sombras, pois, atualmente, apenas “não ser racista” não é o suficiente; é preciso ser antirracista. As populações pretas e pardas continuam enfrentando desigualdades socioeconômicas significativas, e isso não é apenas um problema para essas comunidades, mas para toda a sociedade. O Brasil, logo na próxima década, começará a enfrentar uma forte redução populacional, e será essencial superar essa chaga da discriminação.
Preconceito de qualquer natureza é sinal de baixo capital intelectual. Este 20 de novembro é uma oportunidade para tomarmos consciência de que precisamos lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária.
Jurandir Sell Macedo
Doutor em Finanças Comportamentais com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva, sendo pioneiro nesta área no Brasil. Nosso consultor na área financeira e previdenciária.